imagem: rogério pinto

18.5.08

Vídeo montagem sobre Lygia Clark

Para os interessados deêm uma olhadinha na montagem que fiz com as obras de Lygia e a música que o Caetano Veloso fez para ela.

Acesse o Link:

http://www.youtube.com/watch?v=TYRcKaXw6EQ

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: uma costura (Parte 3 de 3)


O tempo passado, no Caminhando, tem a característica da “redescoberta” do ato, e o tempo futuro vem das escolhas e da continuidade do gesto. Mas essas duas esferas temporais não estão dissociadas do presente, muito pelo contrário, elas só se dão no presente e só são possíveis através da experiência que é plena e incompleta ao mesmo tempo, porque lhe é característico permanecer aberta.
Tanto Lygia quanto Merleau-Ponty, cada um a sua maneira, propunham que “o caminho se faz ao caminhar”, por isso, as relações eram constantemente construídas e transformadas, como ilustram tão brilhantemente os versos de Antonio Machado:


Caminante son tus huellas

el camino, y nada más;

caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

Y al volver la vista atrás

Se vela senda que nunca

Se ha de volver a pisar.

Caminante, no hay camino,

Sino estelas en la mar.[1]

Se não há caminho, pois este deve ser traçado a cada passo, o grande destino a ser atingido é o da experimentação, pois os “passos” é que são fundamentais para a jornada e não o local que se precisaria alcançar. Mais do que isso, os passos desaparecem logo após serem dados, exaltando com isso a relevância do presente, os versos nos orientam e aconselham: “caminhante” se não há caminho entregue-se à caminhada, entregue-se à experiência e atribua a cada passo uma importância ímpar, pois este jamais poderá ser dado novamente.
Não estou com isso querendo negar os pressupostos históricos que sustentam Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty, mas apenas me aproximando dos fundamentos destas obras, que viam na experimentação seus embasamentos e, no processo, um momento mais importante do que o trabalho acabado, uma vez que, ele já era o próprio trabalho. Conforme as palavras de Ponty:


Se a fenomenologia foi um movimento antes de ser uma doutrina ou um sistema, isso não é nem acaso nem impostura. Ela é laboriosa como a obra de Balzac, de Proust, de Valéry ou de Cézanne – pelo mesmo gênero de atenção e de admiração, pela mesma exigência de consciência, pela mesma vontade de apreender o sentido do mundo ou da história em estado nascente.[2]

Merleau-Ponty compara a construção da filosofia fenomenológica à construção das obras de arte. É uma edificação do pensamento, que, por tentar apreender o mundo e não teorizar sobre ele, necessita de uma atenção especial, que nunca se distancia de seu “objeto” de estudo. Contraria-se assim os pressupostos que pregam que o pesquisador e/ou o teórico deve se manter o mais distante possível de seu “objeto” de estudo, a fim de que se conserve uma suposta e pretensa neutralidade científica, a qual, para Ponty, não há como existir.


Pela primeira vez a meditação do filósofo é consciente o bastante para não realizar no mundo e antes dela os seus próprios resultados. (...) O mundo fenomenológico não é explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade.[3]

Esta neutralidade, também é exigida, de certo modo, com relação às obras de arte, mas Lygia faz questão de negá-la. Quebrando os limites tanto da obra como dos espaços expositivos, Lygia rompe com as distâncias exigidas pelo mundo da arte, tanto quanto Ponty quebra com as distâncias do mundo acadêmico.
Assim sendo é a condição de ser-no-mundo que fundam os trabalhos de Lygia Clark e Merleau-Ponty.


[1] MACHADO, Antonio. Poesias escogidas. Madrid: Aguilar, 1958, p. 254.
[2] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. op. Cit., p. 20.
[3] Idem. p. 18 e 19.

14.5.08

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: uma costura (Parte 2 de 3)

Lygia é incansável, a descoberta é o seu lema e sua maior virtude. As rupturas propostas por suas obras ou proposições são resultados, quase diretos, desta necessidade veemente de transformação.
“Só o instante do ato é vida”, afirmou Lygia Clark em 1965:

O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar uma significação. Ele não contém nenhum traço da percepção passada. É um outro momento. No mesmo momento em que ele se desenrola, ele já é uma coisa em si. Só o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato é a única realidade viva em nós mesmos. Tomar consciência já é ser no passado. A percepção bruta do ato é o futuro de se fazer. O passado e o futuro estão implicados no presente-agora do ato.[i]

Fica nítido, que sua criação e sua vivência estiveram, ao longo de sua existência, sempre ligados, e essa relação refletia-se em sua produção diretamente.
Para tanto, gostaria de traçar algumas considerações sobre a obra que representa uma das maiores rupturas da trajetória de Lygia, o Caminhando, de 1964. A obra se constitui de abrir uma fenda em uma tira de papel colada com uma torção de 180º, constituindo uma fita de Moebius, e quando chegar no corte inicial escolher entre continuar à direita ou à esquerda.
É evidente que cada um de nós pode fazer o Caminhando, pode inclusive realizá-lo diversas vezes, sem nunca deixar de ser, concomitantemente, o mesmo e um outro. Pela ação somos impelidos à totalidade. O corte nos faz pensar na intencionalidade e na aleatoriedade de cada gesto.

Com Caminhando fazemos escolhas, optamos por caminhos, mudamos de direção, provocamos o destino, nos perdemos, nos encontramos, temos dúvidas, temos certezas, somos exatos, hesitamos, desistimos, somos pacientes, obsessivos, descuidados, ficamos atentos, brincamos, andamos a grandes cortes, tomamos cuidado, somos indiferentes, nos arrependemos, nos entregamos, morremos. Todas as sensações e questionamentos cabem enquanto dura a experiência.
Portanto, a obra repete a condição humana em si, à de sermos sempre os mesmos e mudarmos constantemente. Desta maneira, esta “obra” poderia ser considerada uma “ode ao processo”.
Neste caso, o que temos é uma ação que só tem a intenção de existir, e não de significar, interpretar ou aludir a outras ações. O gesto é tomado por ele mesmo, com toda a intensidade do instante, sem “ter olhos” para o “por quê” ou para o “com que finalidade” este ato está sendo executado. É a suposta “banalidade” da ação de cortar o papel, que devolve o ser a ele mesmo, que o faz redescobrir a própria mão, o sentir, o escolher, enfim, a liberdade. Assim, a efemeridade da obra contrasta com a duração do sentido da vivência da obra, pois este fica fecundando passado, presente e futuro com suas provocações. A experiência não se encerra nela mesma, o Caminhando continua sempre no gerúndio, permanece infinitamente se fazendo.


[i] CLARK, Lygia. “1965: A propósito do instante”. In: CLARK, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980, p. 27.

6.5.08

Dissertação de mestrado Lygia Clark e Merleau-Ponty: Paralelos

A minha dissertação está disponível na íntegra através do site da Unicamp, basta realizar um cadastro simples e fazer o download. Acesse o link :
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000416302

Ou entre pelo link do blog. Aguardo cometários, pitacos e discussões.

2.5.08

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: uma costura (Parte 1 de 3)


Machado de Assis, em seu conto “Um apólogo”, descreve uma discussão entre um carretel de linha e uma agulha, na qual ambas tentam provar, uma à outra, que são o elemento fundamental da costura: uma por abrir o pano e a outra por mantê-lo unido e aparecer como resultado final. Não entro no mérito moral do conto e fico apenas com a metáfora.
Assim sendo, o que está à mostra aqui são apenas linha e tecido, mas não podemos nos esquecer que para que a costura permanecesse em seu lugar foi necessário encontrar os pontos para abrir espaços nos tecidos da teorização merleaupontyana e nas proposições clarkianas. Ou seja, o que aparece aqui é fruto do processo.
Minhas atenções estão especialmente voltadas para o processo como o modo de ser da obra, dentro de uma abordagem fenomenológica, característica esta que marca tanto Lygia Clark (1920-1988) quanto Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).
As idéias de Ponty propõem constantemente o abandono das conclusões prévias a fim de que adotemos uma postura que mantenha as características fundamentais das coisas, ou seja, o seu caráter provisório e inacabado. O processo é para Merleau-Ponty o único modo de compreensão do mundo que respeita sua “essência”; a teorização sobre ele vem em segundo plano.
Já com Lygia Clark o processo se dá tanto na confecção de suas obras como no próprio modo de ser delas, assim como nas vivências propiciadas por diversas de suas proposições. Lygia descreve em carta ao amigo e artista plástico Hélio Oiticica esta perda de lugar da obra em nome da vivência possibilitada por ela. Em seu discurso podemos perceber que a obra é um instrumento que está a serviço da transformação do ser humano.

Por Deus a vida é sempre para mim o fenômeno mais importante e esse processo quando se faz e aparece é que justifica qualquer ato de criar, pois de há muito a obra para mim cada vez é menos importante e o recriar-se através dela é que é o essencial.[i]

É claro que os escritos de Merleau-Ponty e as proposições de Lygia Clark não são equivalentes, mas discutem situações semelhantes. Assim, procuro evidenciar, em ambos, o processo de criação e de transformação das obras, fato ressaltado, diversas vezes, por seus críticos e estudiosos. Por exemplo, o filósofo italiano Andrea Bonomi, diz que Merleau-Ponty destaca-se pela sua capacidade de “ler os filósofos sem embalsamar-lhes o pensamento, de pensar, como uma vez ele escreveu, ‘em seu rastro’, e de neles encontrar mais um incitamento para a pesquisa do que respostas já prontas.”[ii] E é deste mesmo modo que buscarei compreender os escritos filosóficos de Merleau-Ponty, sem enrijecê-lo.
Durante toda a sua carreira, Merleau-Ponty se interessou em acompanhar os “processos das coisas”, como, por exemplo: o modo como o homem percebe o mundo, os processos da linguagem, o desenvolvimento humano, o processo de criação artística, a interlocução com as obras de arte e o contato entre homem e mundo.
Podemos, então, perguntar por que o processo interessava tanto a Ponty, e para essa questão temos algumas respostas possíveis: primeiramente, porque o processo garante a experimentação e a experiência; durante o fazer os resultados ainda não estão prontos, permanecem instáveis, podendo ser modificados a qualquer momento. Em segundo lugar, porque o filósofo não se interessava pela simples relação entre causa e conseqüência, pois esta relação não descortina o modo como os fenômenos se dão, não revela o acontecimento. O estabelecimento da causalidade, via de regra, está embutida de uma valorização errônea, pois separa em duas partes o todo.

O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas.[iii]

Como coloca Ponty, tanto o mundo como nossa percepção dele não são elementos dados a priori, pelo contrário, são elementos que só se dão no processo. Desta maneira, podemos compreender a importância desse constante fazer para o filósofo.
Mas não é só para Merleau-Ponty que este estado “gerundial” é imprescindível, Lygia também mantém o foco de sua trajetória no processo e não na obra, demonstrando claramente o seu despojamento com relação ao universo artístico: “Aliás, eu sempre disse que, para mim, fazer arte era antes me elaborar como ser humano; não era ter nome ou ter qualquer tipo de conceituação.”[iv]


[i] CLARK, Lygia. “Carta de 26.10.1968, França.” In FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 56.
[ii] BONOMI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 23.
[iii] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção, op. Cit., p. 6.
[iv] Clark, Lygia. “Entrevista a Luciano Figueiredo e Matinas Suzuki”. In FIGUEIREDO, Luciano e SUZUKI JR., Matinas. “A quebra da moldura”. Folhetim, Folha de São Paulo, São Paulo, 02.03.1986, p. 2.


*Texto extraído de minha dissertação de mestrado: "Lygia Clark e Merleau-Ponty: paralelos" Unicamp - 2007

30.4.08

Parangolés e Cobra Norato: Um diálogo

Nos Parangolés de Hélio Oiticica, que são espécies de capas, mantos, roupas, estandartes para se vestir e com eles dançar, é possível também reconhecer características Antropofágicas. Adentrar uma pele, vestir e sair por aí dançando, é uma atividade que tem parentesco, em nossa literatura, com o poema Cobra Norato (escrito em 1928 e publicado em 1931), emblema do Modernismo brasileiro e Poema Antropofágico por excelência, do poeta Raul Bopp:
A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a Cobra. Agora sim
me enfio nessa pele de sede elástica
e saio a correr mundo (BOPP, 1998, p. 3)

Hélio Oiticica. Parangolé P4 Capa 1, 1964, Nildo da Mangueira veste Parangolé. Materiais diversos.


Hélio Oiticica. Parangolé, 1964. Materiais diversos.

É possível relacionar a imagem poética de Bopp, estrangulando e se apropriando da pele da cobra para correr o mundo e vivenciá-lo com o ato de vestir um Parangolé e sair por aí e dançar. O participante se apossa de outra pele e, podemos dizer que “estrangula” o espaço bidimensional da pintura, que corre o mundo com uma nova “pele” no corpo. Penetra-se a pele/tecido do Parangolé, invade-se o espaço grudado ao próprio corpo, experimenta-se a cor no tempo, no movimento, no espaço. Como na lenda de Cobra Norato, onde o sujeito estrangula a cobra e se veste com sua pele para não ser a cobra, mas para ser dentro dela, algo novo. O mesmo acontece com quem veste o Parangolé que experimenta em si mesmo, em seu corpo, a cor, o tempo, o espaço, como um desdobrar Antropofágico das idéias dos Construtivistas, só que agora a participação do espectador é fundamental. Pele que deve ser vestida para que a obra tenha vida. Ou, nas palavras do filósofo e crítico de arte Antonio Cícero:

Mais importante: o Parangolé não pode ser exposto como uma pintura convencional. Ele deve ser não apenas visto mas tocado: e não apenas tocado mas vestido. O corpo compõe com o Parangolé que veste uma unidade sempre nova. (CÍCERO, 1995, p. 186-7)

Portanto, com o Parangolé se percebe, seja na devoração/estrangulação da pintura convencional ou na nova unidade que sempre é percebida, através dos diferentes corpos que assumem o corpo/pele Parangolé, a mais profunda filiação a Antropofagia Osvaldiana ou a pele/capa da Cobra Norato de Raul Bopp.
O ato de vestir uma capa ou manto tem uma carga simbólica em diversas tradições espirituais. Por exemplo, um monge cristão no momento de proferir seus votos e se afastar do mundo se cobre com um manto ou capa. Um gesto que caracteriza simbolicamente a sua retirada do mundo a caminho de si mesmo, aproximando-se de Deus. Renúncia das tentações do mundo material. O ato de vestir um manto nesse sentido é uma escolha pela sabedoria, é adotar uma compostura, uma função, de que a capa é símbolo. O manto/capa Parangolé se insere nessa tradição, a de ser elemento ritual e simbólico. Um acontecimento quase mítico ao compor a experiência daquele que veste a capa e dança numa fusão manto/corpo/cor/tempo/espaço. O espectador é a obra. Vestir a capa Parangolé é um acontecimento de que o sujeito é agente ativo, necessário para que a “pele” ganhe vida e sentido. Numa relação de profunda intimidade com o participante.
Bibliografia:
BOPP, Raul. Cobra Norato. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
CÍCERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
(texto originalmente escrito para dissertação do meu mestrado: "Hélio Oiticica: antropófago de si mesmo").

6.4.08

A subjetividade do abandono na pintura de Rogério Pinto



A pintura de Rogério Pinto quer resignificar a imagem, refazê-la, reconstruí-la, deformá-la, tirá-la da fôrma, dar nova forma, poetizá-la. E a princípio esta sempre foi a consciência daqueles que se aplicaram a arte pictórica. No entanto, para isso, Rogério faz uso de imagens oriundas da fotografia; as seleciona, recorta, escolhe e compõe uma espécie de colagem no computador, depois as imprimi na tela. Este primeiro gesto mecânico antecede a ação física da pintura, mas não é menos importante.


A memória da primeira imagem, para não se perder, luta contra o esquecimento. Rogério quer anular o processo inicial, e do embate (raspar, sobrepor camadas de tinta, repintar e apagar figuras) entre uma imagem eleita e a composição pictórica, nasce a sua poética: dar um novo corpo para um registro visual encarcerado e esquecido no tempo.
Rogério une símbolos perdidos entre si e os harmoniza como se tivessem vivido juntos desde sempre; uma girafa com o número 5, uma garotinha sentada com uma pantufa de coelhinho, um cabide suspenso e um sapato são companhias para um rosto que não se vê e o número 2.
Rogério faz pintura por excelência; a cor e o espaço bidimensional são o seu material bruto, mas não dá para chamá-lo de formalista, isso seria reduzir o potencial simbólico de seu trabalho.
Deste modo, a sua pintura é, em seu processo, impregnada de uma subjetividade do abandono, daquilo que está desamparado, deixado de lado, largado. São imagens que ninguém mais quer que Rogério escolhe para o seu trabalho, explico: Rogério não escolhe imagens populares de famosos ou de apelo midiático, opta pelas esquecidas. Processo, aliás, que apesar de resultar numa pintura, está desde seu início tomado pela idéia do registro fotográfico e de seu rastro, sua memória no tempo.


Pinturas como o Homem Dividido (acima), e mesmo uma série de retratos anônimos são representações do abandono, do esquecimento, daquilo ou daquele que já não interessa e que Rogério dá novo sentido, reelaborando, desmembrando e recompondo as coisas, os seres e os signos que evoca. Com gestos que estão entre ternura e vigor, apropriação e criação, figuração e abstração, impermanência e eternidade, urgência e contemplação.
Parece que a pintura de Rogério quer nos dizer que sem o encontro com o passado o presente se esvazia e, por isso, desmembra os corpos, como se emergisse daquela imagem primeira o homem contemporâneo; cindido e sem unidade por si. Ressalta e valoriza as partes: um pé, um chapéu, uma cabeça, um sapato, uma parte de um animal, um número; para reorganizá-los. E no ato de composição/compaixão Rogério os harmoniza com o presente, revelando as partes que compõe o todo e vice-versa, dando-lhes vida nova, enchendo-lhes de sentido e de uma esperança velada por sua aparente desilusão.


E exatamente por anular em seu processo criativo o que, de certa maneira já estava anulado pelo tempo e desinteresse alheio, é que as imagens fotográficas inicialmente escolhidas por Rogério - figuras de abandono – renascem em sua pintura como a ave mitológica Fênix, só que já não são as mesmas.

Urgência do sublime


Isto não são nuvens. Este não é o céu. Este muro preto, não é um muro. Isto não é uma paisagem. E isto não é uma galeria. Desde René Magritte, “Isto não é um cachimbo”, até Lygia Pape “Isto não é uma nuvem”, é que os artistas vêm discutindo o domínio da representação como espaços para pequenas ou grandes farsas transformadas em verdades constituídas. Fábio Tremonte, ao apresentar seu projeto para a fachada da galeria Vermelho, sabe que o céu não é o céu e que o muro preto tão pouco está ali. O que o artista propõe para a fachada da galeria é o seu disfarce, a sua não-representação, sua Camuflagem; palavra com que nomeia o seu trabalho.
A galeria está invisível. A paisagem/camuflagem torna possível a invisibilidade das coisas “reais”. Fábio revela o exterior do cubo branco e o toma para si. Volta-se para a rua para comunicar o seu gesto mínimo. Zen. Apresenta o seu espaço de silêncio e nos traz a sua revelação em uma poética do sublime. Deixa-nos evidente o seu disfarce e não quer transcender, quer se misturar, fundir-se, confundir-se. Não sobe aos céus, desce com o céu para o ordinário plano terrestre. E não quer o céu como representação realista, o quer como um organismo que muda suas características para adaptar-se ao meio em que vive. E para adaptar-se recorre ao sublime.
Outro elemento importante é a presença do azul. Não é de hoje que Fábio o persegue em sua poética. Desde o azul do céu, do mar, até a cor em si. Como em seus desenhos, fotografias, instalações e pinturas, onde o azul é uma constante. Talvez por ser o azul a mais imaterial das cores - e por isso tenha dito a escritora Clarice Lispector que “o inalcançável é sempre azul” - é que Tremonte a persiga incansavelmente.
O preto também presente, numa faixa-muro, podendo evocar o céu noturno, a morte, o nada, o caos, ou apenas a ausência de luz, surge como elemento de transição e contraste a segurar o fardo do azul nas costas, a lhe dar luminosidade. Como nos versos do poeta Murilo Mendes: “Sem o filtro da morte/ quem me faz absorver o azul?”
Extraindo o fato metafísico e Zen do projeto de Tremonte, importa pensar na urgência banal dos lambe-lambes (mídia utilizada pelo artista) a povoar os muros da cidade com sua publicidade, sujeitos às intempéries do tempo, como as chuvas, de que ironicamente a própria natureza das nuvens é produtora. A impermanência das coisas também disfarçadas em sua comunhão com o real, de que ela, a obra, não existe dentro da lógica do cotidiano, mas que, inevitavelmente está ali e pode ser vista.
Fábio em sua instalação Camuflagem se utiliza de elementos urgentes da comunicação das ruas para compor o seu disfarce, porque também tem urgência. Urgência em inventar um gesto sublime no espaço e no tempo. Urgência em poetizar a nossa percepção.

A fotografia como idéia em Marcos Gorgati



A fotografia como idéia. O clichê de que todo bom fotógrafo é aquele sujeito que, dotado de um olhar “genial”, recorta uma possível realidade, é ironicamente apresentado nas fotografias de Marcos Gorgati. Se há, em nossos dias, uma banalização das imagens do cotidiano e, mesmo, uma redundância/excesso das imagens apresentadas, Gorgati reinventa com seu olhar construtivo e desconcertante a mesma “realidade” que enxerga nas paisagens urbanas; mostrando “aquilo que não está” na imagem fotografada, construindo uma nova imagem.


Nesse espaço construído, como sugere o próprio artista, no modo como nomeia esses trabalhos “Paisagens e outras idéias construídas” há uma possível filiação com a idéia de construtividade, no tratamento formal de sua composição como em “Prédio no centro”, “Escada”. Assim como, o de “Arte como idéia” em “Percurso/ O fio de cabelo”, que traz para o trabalho de Gorgati uma íntima relação com os conceitualismos das décadas de 1960 e 70.
Pensar a fotografia apenas como uma idéia da realidade não é nenhuma novidade. Mas o que surpreende nos trabalhos de Marcos Gorgati é a sua capacidade em sugerir esta idéia, ironizando o clichê, construindo e desconstruindo paisagens e idéias. Faz o recorte consciente de uma imagem já registrada e reinventa aquilo que julgamos ser o real.

Por isso, Marcos também faz o caminho inverso. Se numa foto acrescenta elementos e justapõe idéias, em outra, como em “Desfotografar”, vai do máximo ao mínimo da imagem, até a sua aparente invisibilidade.
Enfim, a fotografia como idéia em Marcos Gorgati é a busca “daquilo que não está”, “daquilo que não se vê” como representação. Uma idéia construída.

O corpo pede passagem em Carol Velásquez



As coisas têm corpo. Espaço penetrável de passagem. Nos trabalhos de Carol Velásquez, mesmo a pintura é penetrável, participante, herdeira de ludicidade, como se a cor, o ser, o símbolo, a linha, os suportes de papelão ou madeira de suas pinturas quisessem brincar com o nosso aparente distanciamento. Nossa transcendência diante de sua bidimensionalidade.
Como em Miró, Dubuffet e Basquiat, a pintura de Carol tem urgência de comunicação, é anti-clássica, persegue o fabuloso, o cotidiano, o memorial, parece pedir a participação. Pedir imanência.


C. Velásquez quer o corpo que se encanta de dentro e não de fora da obra, quer usá-lo, devorá-lo, corrompê-lo de seu estado de inanição. Veja o “Tambor de mola”; estruturas com latas sobrepostas de modo a formar uma parede, com molas que saltam da lata e tocam o corpo do espectador quando passa entre as estruturas montadas, e emitem sons; do contato da pele do espectador com o objeto.
Este objeto-instalação remete aos penetráveis de Hélio Oiticica, no que diz respeito ao contato do corpo com a cor e ao caminho de passagem por onde o espectador adentra, e ao contato direto com o objeto com os penetráveis de Jesus Soto; as linhas que tocam a pele. É também uma engenhoca musical como uma escultura sonora do guru tropicalista Walter Smétak.
Se a pintura de Carol é imagética, lúdica, quase pop, o seu encaminhamento tridimensional é musical, lúdico, lírico e, mesmo, construtivo, pelo viés Neoconcreto. Ou seja, há uma íntima coerência entre as suas pinturas e o seu desenvolvimento no espaço. Uma continuidade complementar. Do corpo pedindo passagem, abertura, acesso, contato. Do corpo que se ilumina pelas cores vibrantes de suas pinturas ou pela existência que nos é revelada-iluminada pelo toque do corpo com o “Tambor de mola”.
A idéia de “passagem” em C. Velásquez é a de um tempo duradouro na experiência breve da passagem do espectador pelo “Tambor de mola”. É também o chamamento para o prazer do espaço lúdico. A preocupação da artista com o espectador e suas ressonâncias gera um movimento sedutor em sua pesquisa. Um movimento que quer alcançar o espectador pela camada fina da pele, por suas leituras não-verbais e íntimas. É o corpo vibrando do espectador que Carol busca, e não sua erudição.
O que Carol Velásquez aspira, seja nas pinturas ou em suas experiências tridimensionais, é romper a distância entre o objeto e o corpo do espectador, quer envolvê-lo, assombrá-lo, para que ele sinta no corpo, para além do olhar. Carol pede passagem para o corpo. Um encantamento direto, sentido na pele, nos ossos, na carne.