imagem: rogério pinto

2.5.08

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: uma costura (Parte 1 de 3)


Machado de Assis, em seu conto “Um apólogo”, descreve uma discussão entre um carretel de linha e uma agulha, na qual ambas tentam provar, uma à outra, que são o elemento fundamental da costura: uma por abrir o pano e a outra por mantê-lo unido e aparecer como resultado final. Não entro no mérito moral do conto e fico apenas com a metáfora.
Assim sendo, o que está à mostra aqui são apenas linha e tecido, mas não podemos nos esquecer que para que a costura permanecesse em seu lugar foi necessário encontrar os pontos para abrir espaços nos tecidos da teorização merleaupontyana e nas proposições clarkianas. Ou seja, o que aparece aqui é fruto do processo.
Minhas atenções estão especialmente voltadas para o processo como o modo de ser da obra, dentro de uma abordagem fenomenológica, característica esta que marca tanto Lygia Clark (1920-1988) quanto Maurice Merleau-Ponty (1908-1961).
As idéias de Ponty propõem constantemente o abandono das conclusões prévias a fim de que adotemos uma postura que mantenha as características fundamentais das coisas, ou seja, o seu caráter provisório e inacabado. O processo é para Merleau-Ponty o único modo de compreensão do mundo que respeita sua “essência”; a teorização sobre ele vem em segundo plano.
Já com Lygia Clark o processo se dá tanto na confecção de suas obras como no próprio modo de ser delas, assim como nas vivências propiciadas por diversas de suas proposições. Lygia descreve em carta ao amigo e artista plástico Hélio Oiticica esta perda de lugar da obra em nome da vivência possibilitada por ela. Em seu discurso podemos perceber que a obra é um instrumento que está a serviço da transformação do ser humano.

Por Deus a vida é sempre para mim o fenômeno mais importante e esse processo quando se faz e aparece é que justifica qualquer ato de criar, pois de há muito a obra para mim cada vez é menos importante e o recriar-se através dela é que é o essencial.[i]

É claro que os escritos de Merleau-Ponty e as proposições de Lygia Clark não são equivalentes, mas discutem situações semelhantes. Assim, procuro evidenciar, em ambos, o processo de criação e de transformação das obras, fato ressaltado, diversas vezes, por seus críticos e estudiosos. Por exemplo, o filósofo italiano Andrea Bonomi, diz que Merleau-Ponty destaca-se pela sua capacidade de “ler os filósofos sem embalsamar-lhes o pensamento, de pensar, como uma vez ele escreveu, ‘em seu rastro’, e de neles encontrar mais um incitamento para a pesquisa do que respostas já prontas.”[ii] E é deste mesmo modo que buscarei compreender os escritos filosóficos de Merleau-Ponty, sem enrijecê-lo.
Durante toda a sua carreira, Merleau-Ponty se interessou em acompanhar os “processos das coisas”, como, por exemplo: o modo como o homem percebe o mundo, os processos da linguagem, o desenvolvimento humano, o processo de criação artística, a interlocução com as obras de arte e o contato entre homem e mundo.
Podemos, então, perguntar por que o processo interessava tanto a Ponty, e para essa questão temos algumas respostas possíveis: primeiramente, porque o processo garante a experimentação e a experiência; durante o fazer os resultados ainda não estão prontos, permanecem instáveis, podendo ser modificados a qualquer momento. Em segundo lugar, porque o filósofo não se interessava pela simples relação entre causa e conseqüência, pois esta relação não descortina o modo como os fenômenos se dão, não revela o acontecimento. O estabelecimento da causalidade, via de regra, está embutida de uma valorização errônea, pois separa em duas partes o todo.

O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas.[iii]

Como coloca Ponty, tanto o mundo como nossa percepção dele não são elementos dados a priori, pelo contrário, são elementos que só se dão no processo. Desta maneira, podemos compreender a importância desse constante fazer para o filósofo.
Mas não é só para Merleau-Ponty que este estado “gerundial” é imprescindível, Lygia também mantém o foco de sua trajetória no processo e não na obra, demonstrando claramente o seu despojamento com relação ao universo artístico: “Aliás, eu sempre disse que, para mim, fazer arte era antes me elaborar como ser humano; não era ter nome ou ter qualquer tipo de conceituação.”[iv]


[i] CLARK, Lygia. “Carta de 26.10.1968, França.” In FIGUEIREDO, Luciano (org.). Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-1974. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 56.
[ii] BONOMI, Andrea. Fenomenologia e estruturalismo. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 23.
[iii] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção, op. Cit., p. 6.
[iv] Clark, Lygia. “Entrevista a Luciano Figueiredo e Matinas Suzuki”. In FIGUEIREDO, Luciano e SUZUKI JR., Matinas. “A quebra da moldura”. Folhetim, Folha de São Paulo, São Paulo, 02.03.1986, p. 2.


*Texto extraído de minha dissertação de mestrado: "Lygia Clark e Merleau-Ponty: paralelos" Unicamp - 2007

Nenhum comentário: