imagem: rogério pinto

30.4.08

Parangolés e Cobra Norato: Um diálogo

Nos Parangolés de Hélio Oiticica, que são espécies de capas, mantos, roupas, estandartes para se vestir e com eles dançar, é possível também reconhecer características Antropofágicas. Adentrar uma pele, vestir e sair por aí dançando, é uma atividade que tem parentesco, em nossa literatura, com o poema Cobra Norato (escrito em 1928 e publicado em 1931), emblema do Modernismo brasileiro e Poema Antropofágico por excelência, do poeta Raul Bopp:
A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a Cobra. Agora sim
me enfio nessa pele de sede elástica
e saio a correr mundo (BOPP, 1998, p. 3)

Hélio Oiticica. Parangolé P4 Capa 1, 1964, Nildo da Mangueira veste Parangolé. Materiais diversos.


Hélio Oiticica. Parangolé, 1964. Materiais diversos.

É possível relacionar a imagem poética de Bopp, estrangulando e se apropriando da pele da cobra para correr o mundo e vivenciá-lo com o ato de vestir um Parangolé e sair por aí e dançar. O participante se apossa de outra pele e, podemos dizer que “estrangula” o espaço bidimensional da pintura, que corre o mundo com uma nova “pele” no corpo. Penetra-se a pele/tecido do Parangolé, invade-se o espaço grudado ao próprio corpo, experimenta-se a cor no tempo, no movimento, no espaço. Como na lenda de Cobra Norato, onde o sujeito estrangula a cobra e se veste com sua pele para não ser a cobra, mas para ser dentro dela, algo novo. O mesmo acontece com quem veste o Parangolé que experimenta em si mesmo, em seu corpo, a cor, o tempo, o espaço, como um desdobrar Antropofágico das idéias dos Construtivistas, só que agora a participação do espectador é fundamental. Pele que deve ser vestida para que a obra tenha vida. Ou, nas palavras do filósofo e crítico de arte Antonio Cícero:

Mais importante: o Parangolé não pode ser exposto como uma pintura convencional. Ele deve ser não apenas visto mas tocado: e não apenas tocado mas vestido. O corpo compõe com o Parangolé que veste uma unidade sempre nova. (CÍCERO, 1995, p. 186-7)

Portanto, com o Parangolé se percebe, seja na devoração/estrangulação da pintura convencional ou na nova unidade que sempre é percebida, através dos diferentes corpos que assumem o corpo/pele Parangolé, a mais profunda filiação a Antropofagia Osvaldiana ou a pele/capa da Cobra Norato de Raul Bopp.
O ato de vestir uma capa ou manto tem uma carga simbólica em diversas tradições espirituais. Por exemplo, um monge cristão no momento de proferir seus votos e se afastar do mundo se cobre com um manto ou capa. Um gesto que caracteriza simbolicamente a sua retirada do mundo a caminho de si mesmo, aproximando-se de Deus. Renúncia das tentações do mundo material. O ato de vestir um manto nesse sentido é uma escolha pela sabedoria, é adotar uma compostura, uma função, de que a capa é símbolo. O manto/capa Parangolé se insere nessa tradição, a de ser elemento ritual e simbólico. Um acontecimento quase mítico ao compor a experiência daquele que veste a capa e dança numa fusão manto/corpo/cor/tempo/espaço. O espectador é a obra. Vestir a capa Parangolé é um acontecimento de que o sujeito é agente ativo, necessário para que a “pele” ganhe vida e sentido. Numa relação de profunda intimidade com o participante.
Bibliografia:
BOPP, Raul. Cobra Norato. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
CÍCERO, Antonio. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
(texto originalmente escrito para dissertação do meu mestrado: "Hélio Oiticica: antropófago de si mesmo").

Um comentário:

Anônimo disse...

Olha que coincidência! Estava no google pesquisando imagens de parangolés, com referência (isso é super difícil), e caí aqui...
Adorei os ensaios...
bjos
val