imagem: rogério pinto

14.5.08

Lygia Clark e Maurice Merleau-Ponty: uma costura (Parte 2 de 3)

Lygia é incansável, a descoberta é o seu lema e sua maior virtude. As rupturas propostas por suas obras ou proposições são resultados, quase diretos, desta necessidade veemente de transformação.
“Só o instante do ato é vida”, afirmou Lygia Clark em 1965:

O instante do ato não é renovável. Ele existe por si próprio: o repetir é lhe dar uma significação. Ele não contém nenhum traço da percepção passada. É um outro momento. No mesmo momento em que ele se desenrola, ele já é uma coisa em si. Só o instante do ato é vida. Por natureza, o ato contém em si mesmo seu próprio excesso, seu próprio vir-a-ser. O instante do ato é a única realidade viva em nós mesmos. Tomar consciência já é ser no passado. A percepção bruta do ato é o futuro de se fazer. O passado e o futuro estão implicados no presente-agora do ato.[i]

Fica nítido, que sua criação e sua vivência estiveram, ao longo de sua existência, sempre ligados, e essa relação refletia-se em sua produção diretamente.
Para tanto, gostaria de traçar algumas considerações sobre a obra que representa uma das maiores rupturas da trajetória de Lygia, o Caminhando, de 1964. A obra se constitui de abrir uma fenda em uma tira de papel colada com uma torção de 180º, constituindo uma fita de Moebius, e quando chegar no corte inicial escolher entre continuar à direita ou à esquerda.
É evidente que cada um de nós pode fazer o Caminhando, pode inclusive realizá-lo diversas vezes, sem nunca deixar de ser, concomitantemente, o mesmo e um outro. Pela ação somos impelidos à totalidade. O corte nos faz pensar na intencionalidade e na aleatoriedade de cada gesto.

Com Caminhando fazemos escolhas, optamos por caminhos, mudamos de direção, provocamos o destino, nos perdemos, nos encontramos, temos dúvidas, temos certezas, somos exatos, hesitamos, desistimos, somos pacientes, obsessivos, descuidados, ficamos atentos, brincamos, andamos a grandes cortes, tomamos cuidado, somos indiferentes, nos arrependemos, nos entregamos, morremos. Todas as sensações e questionamentos cabem enquanto dura a experiência.
Portanto, a obra repete a condição humana em si, à de sermos sempre os mesmos e mudarmos constantemente. Desta maneira, esta “obra” poderia ser considerada uma “ode ao processo”.
Neste caso, o que temos é uma ação que só tem a intenção de existir, e não de significar, interpretar ou aludir a outras ações. O gesto é tomado por ele mesmo, com toda a intensidade do instante, sem “ter olhos” para o “por quê” ou para o “com que finalidade” este ato está sendo executado. É a suposta “banalidade” da ação de cortar o papel, que devolve o ser a ele mesmo, que o faz redescobrir a própria mão, o sentir, o escolher, enfim, a liberdade. Assim, a efemeridade da obra contrasta com a duração do sentido da vivência da obra, pois este fica fecundando passado, presente e futuro com suas provocações. A experiência não se encerra nela mesma, o Caminhando continua sempre no gerúndio, permanece infinitamente se fazendo.


[i] CLARK, Lygia. “1965: A propósito do instante”. In: CLARK, Lygia. Lygia Clark. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980, p. 27.

Um comentário:

david santos disse...

Olá, Daniela!
Concordo com a forma como vês as diversas questões escritas no teu post.
Parabéns.